segunda-feira, 13 de julho de 2015
A PIPOCA
A culinária me fascina. De vez em quando eu até me até atrevo a cozinhar.
Mas o fato é que sou mais competente com as palavras que com as panelas. Por
isso tenho mais escrito sobre comidas que cozinhado. Dedico-mo a algo que
poderia ter o nome de "culinária literária". Já escrevi sobre as mais
variadas entidades do mundo da cozinha: cebolas, ora-pro-nobis, picadinho de
carne com tomate feijão e arroz, bacalhoada, suflês, sopas, churrascos.
Cheguei mesmo a dedicar metade de um livro poético-filosófico a uma
meditação sobre o filme A festa de Babette, que é uma celebração da comida
como ritual de feitiçaria. Sabedor das minhas limitações e competências,
nunca escrevi como chef. Escrevi como filósofo, poeta, psicanalista e
teólogo - porque a culinária estimula todas essas funções do pensamento.
As comidas, para mim, são entidades oníricas. Provocam a minha capacidade de
sonhar. Nunca imaginei, entretanto, que chegaria um dia em que a pipoca iria
me fazer sonhar. Pois foi precisamente isso que aconteceu. A pipoca, milho
mirrado, grãos redondos e duros, me pareceu uma simples molecagem,
brincadeira deliciosa, sem dimensões metafísicas ou psicanalíticas.
Entretanto, dias atrás, conversando com uma paciente, ela mencionou a
pipoca. E algo inesperado na minha mente aconteceu. Minhas ideias começaram
a estourar como pipoca. Percebi, então, a relação metafórica entre a pipoca
e o ato de pensar. Um bom pensamento nasce como uma pipoca que estoura, de
forma inesperada e imprevisível. A pipoca se revelou a mim, então, como um
extraordinário objeto poético. Poético porque, ao pensar nelas, as pipocas,
meu pensamento se pôs a dar estouros e pulos como aqueles das pipocas dentro
de uma panela.
Lembrei-me do sentido religioso da pipoca. A pipoca tem sentido religioso?
Pois tem. Para os cristãos, religiosos são o pão e o vinho, que simbolizam o
corpo e o sangue de Cristo, a mistura de vida e alegria (porque vida, só
vida, sem alegria, não é vida...). Pão e vinho devem ser bebidos juntos.
Vida e alegria devem existir juntas. Lembrei-me, então, de lição que aprendi
com a Mãe Stella, sábia poderosa do candomblé baiano: que a pipoca é a
comida sagrada do candomblé...
A pipoca é um milho mirrado, subdesenvolvido. Fosse eu agricultor ignorante,
e se no meio dos meus milhos graúdos aparecessem aquelas espigas nanicas, eu
ficaria bravo e trataria de me livrar delas. Pois o fato é que, sob o ponto
de vista do tamanho, os milhos da pipoca não podem competir com os milhos
normais. Não sei como isso aconteceu, mas o fato é que houve alguém que teve
a ideia de debulhar as espigas e colocá-las numa panela sobre o fogo,
esperando que assim os grãos amolecessem e pudessem ser comidos. Havendo
fracassado a experiência com água, tentou a gordura. O que aconteceu,
ninguém jamais poderia ter imaginado. Repentinamente os grãos começaram a
estourar, saltavam da panela com uma enorme barulheira. Mas o extraordinário
era o que acontecia com eles: os grãos duros quebra-dentes se transformavam
em flores brancas e macias que até as crianças podiam comer. O estouro das
pipocas se transformou, então, de uma simples operação culinária, em uma
festa, brincadeira, molecagem, para os risos de todos, especialmente as
crianças. É muito divertido ver o estouro das pipocas!
E o que é que isso tem a ver com o candomblé? É que a transformação do milho
duro em pipoca macia é símbolo da grande transformação porque devem passar
os homens para que eles venham a ser o que devem ser. O milho da pipoca não
é o que deve ser. Ele deve ser aquilo que acontece depois do estouro. O
milho da pipoca somos nós: duros, quebra-dentes, impróprios para comer, pelo
poder do fogo podemos, repentinamente, nos transformar em outra coisa -
voltar a ser crianças!
Mas a transformação só acontece pelo poder do fogo. Milho de pipoca que não
passa pelo fogo continua a ser milho de pipoca, para sempre. Assim acontece
com a gente. As grandes transformações acontecem quando passamos pelo fogo.
Quem não passa pelo fogo fica do mesmo jeito, a vida inteira. São pessoas de
uma mesmice e dureza assombrosas. Só que elas não percebem. Acham que o seu
jeito de ser é o melhor jeito de ser. Mas, de repente, vem o fogo. O fogo é
quando a vida nos lança numa situação que nunca imaginamos. Dor. Pode ser
fogo de fora: perder um amor, perder um filho, ficar doente, perder um
emprego, ficar pobre. Pode ser fogo de dentro. Pânico, medo, ansiedade,
depressão - sofrimentos cujas causas ignoramos. Há sempre o recurso aos
remédios. Apagar o fogo. Sem fogo o sofrimento diminui. E com isso a
possibilidade da grande transformação.
Imagino que a pobre pipoca, fechada dentro da panela, lá dentro ficando cada
vez mais quente, pense que sua hora chegou: vai morrer. De dentro de sua
casca dura, fechada em si mesma, ela não pode imaginar destino diferente.
Não pode imaginar a transformação que está sendo preparada. A pipoca não
imagina aquilo de que ela é capaz. Aí, sem aviso prévio, pelo poder do fogo,
a grande transformação acontece: pum! - e ela aparece como uma outra coisa,
completamente diferente, que ela mesma nunca havia sonhado. É a lagarta
rastejante e feia que surge do casulo como borboleta voante.
Na simbologia cristã o milagre do milho de pipoca está representado pela
morte e ressurreição de Cristo: a ressurreição é o estouro do milho de
pipoca. É preciso deixar de ser de um jeito para ser de outro. "Morre e
transforma-te!" - dizia Goethe.
Em Minas, todo mundo sabe o que é piruá. Falando sobre os piruás com os
paulistas descobri que eles ignoram o que seja. Alguns, inclusive, acharam
que era gozação minha, que piruá é palavra inexistente. Cheguei a ser
forçado a me valer do Aurélio para confirmar o meu conhecimento da língua.
Piruá é o milho de pipoca que se recusa a estourar. Meu amigo William,
extraordinário professor-pesquisador da Unicamp, especializou-se em milhos,
e desvendou cientificamente o assombro do estouro da pipoca. Com certeza ele
tem uma explicação científica para os piruás. Mas, no mundo da poesia as
explicações científicas não valem. Por exemplo: em Minas "piruá" é o nome
que se dá às mulheres que não conseguiram casar. Minha prima, passada dos
quarenta, lamentava: "Fiquei piruá!" Mas acho que o poder metafórico dos
piruás é muito maior. Piruás são aquelas pessoas que, por mais que o fogo
esquente, se recusam a mudar. Elas acham que não pode existir coisa mais
maravilhosa do que o jeito delas serem. Ignoram o dito de Jesus: "Quem
preservar a sua vida perde-la-á." A sua presunção e o seu medo são a dura
casca do milho que não estoura. O destino delas é triste. Vão ficar duras a
vida inteira. Não vão se transformar na flor branca macia. Não vão dar
alegria para ninguém. Terminado o estouro alegre da pipoca, no fundo a
panela ficam os piruás que não servem para nada. Seu destino é o lixo.
Quanto às pipocas que estouraram, são adultos que voltaram a ser crianças e
que sabem que a vida é uma grande brincadeira...
(RUBEM ALVES/Correio Popular, 29/08/1999)
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