ENTREVISTA SOBRE TECNOLOGIA SOCIAL
De: Marcio Schiavo (diretor-presidente da Comunicarte)
Para: Andréia Peres
Para: Andréia Peres
1. A idéia é primeiro contextualizar o termo: de onde veio o conceito tecnologia social?
O conceito – não a expressão tecnologia social – vem de longe: surge a partir do conceito de tecnologia apropriada (TA), desenvolvido por Mahatma Ghandi na Índia, entre os anos de 1924 e 1927, que revolucionou o processo de fiação manual, como forma de lutar contra as injustiças sociais prevalentes naquele país. O trabalho de Ghandi despertou a consciência política de milhões de indianos, mostrando-lhes a necessidade de autodeterminação das comunidades e, também, de implementar um processo de desenvolvimento que privilegiasse o saber social, popular, e as soluções nativas – em vez do conhecimento importado, sempre distante da realidade cotidiana dos cidadãos e, por vezes, contrário a essa realidade. As idéias propostas por Ghandi implicavam a contínua melhoria dos processos e técnicas tradicionais, a adaptação das tecnologias modernas (TM) à realidade local, aos requisitos de segurança e saúde das pessoas e de preservação do meio ambiente, além do estímulo ao uso das pesquisas e experimentos científicos na solução dos problemas mais importantes e imediatos. A base de todo este trabalho, contudo, era a intensa participação das comunidades afetadas na busca de soluções para os seus problemas, assim como o aproveitamento dos diferentes saberes, informações e experiências acumuladas pelos cidadãos.
As idéias de Ghandi, pouco a pouco, começaram a influenciar as comunidades excluídas de países próximos à Índia, como a China, por exemplo. Mais tarde, foram incorporadas, melhor desenvolvidas e sistematizadas por Ernest Frederich Schumacher, economista alemão radicado na Inglaterra. Ele criou a expressão tecnologia intermediária – também chamada de tecnologia popular – para identificar um tipo de tecnologia que, por suas características, seria mais apropriada aos países pobres. Estas características eram as seguintes: a) baixo custo operacional; b) simplicidade funcional; c) facilidade de manejo; d) eficácia na solução dos problemas cotidianos; e) uso em pequena escala; f) replicabilidade, isto é, a possibilidade de ser aplicada em outros contextos sociais com a mesma eficácia. Foram estas mesmas características (requisitos) que fundamentaram o conceito de tecnologia social (TS) em sua gênese, no Brasil, visto como estratégia eficaz para gerar e sustentar a autodeterminação das comunidades excluídas em seu processo de desenvolvimento.
As idéias de Ghandi, pouco a pouco, começaram a influenciar as comunidades excluídas de países próximos à Índia, como a China, por exemplo. Mais tarde, foram incorporadas, melhor desenvolvidas e sistematizadas por Ernest Frederich Schumacher, economista alemão radicado na Inglaterra. Ele criou a expressão tecnologia intermediária – também chamada de tecnologia popular – para identificar um tipo de tecnologia que, por suas características, seria mais apropriada aos países pobres. Estas características eram as seguintes: a) baixo custo operacional; b) simplicidade funcional; c) facilidade de manejo; d) eficácia na solução dos problemas cotidianos; e) uso em pequena escala; f) replicabilidade, isto é, a possibilidade de ser aplicada em outros contextos sociais com a mesma eficácia. Foram estas mesmas características (requisitos) que fundamentaram o conceito de tecnologia social (TS) em sua gênese, no Brasil, visto como estratégia eficaz para gerar e sustentar a autodeterminação das comunidades excluídas em seu processo de desenvolvimento.
2. Por que usar uma palavra que pressupõe uma experimentação científica (tecnologia) associada à área social?
Exatamente para mostrar que nem tudo na área social é ou deve ser fruto do conhecimento empírico, que a eficácia e eficiência dos saberes e experiências populares pode ser demonstrada cientificamente, por meio da análise dos processos pelos quais se desenvolvem, dos resultados e impactos sociais que geram. Com isso, também se pretendia deixar claro que uma atuação social consistente requer bem mais do que boas intenções, do que “o desejo de fazer o bem sem olhar a quem”. Em respeito à dignidade das próprias pessoas a quem se pretende beneficiar, em respeito ao seu direito à autonomia social e pessoal e à autodeterminação, a ação social requer intensos estudos e pesquisas, análises e observações críticas constantes, além de um permanente e progressivo processo de avaliação e feedback, que propicie o aperfeiçoamento contínuo dos processos e instrumentos utilizados e a otimização dos resultados e impactos sociais obtidos. Esta forma de atuação social alinha-se, sem dúvida, aos requisitos do fazer científico.
3. Tecnologia social é uma evolução de franquia social?
Não. São conceitos bem diferentes. A tecnologia social refere-se basicamente a uma forma de atuação social, a uma modalidade de intervenção social fundamentado em um determinado processo, método, estratégia, conceito e/ou instrumento específico, que tenha as características básicas delineadas na resposta à primeira pergunta. A franquia social diz respeito à criação e sistematização de um modelo que facilite a disseminação e replicação dessa tecnologia em outros ambientes sociais ou comunidades. Em suma: toda e qualquer tecnologia social – que, obrigatoriamente, tem na replicabilidade uma de suas características básicas – pode ser formatada como franquia social e esta baseia-se em uma ou mais tecnologias sociais. O importante é que esses conceitos sejam compreendidos como complementares, embora diferenciados, a fim de que se possa aproveitar todo o seu imenso potencial para alavancar, sustentar e nortear o processo de desenvolvimento humano local sustentável.
4. Como o termo foi mudando ao longo da história e o que foi se transformando com essa alteração de terminologia?
Como foi dito, o conceito de tecnologia social surgiu e evoluiu ao longo do século passado, sendo utilizadas para designá-lo (embora, não-exclusivamente), expressões como tecnologia intermediária, tecnologia apropriada, tecnologia popular, tecnologia alternativa, tecnologia comunitária, tecnologia da escassez, tecnologia de baixo custo, tecnologia socialmente apropriada, tecnologia ambientalmente apropriada, tecnologia humana e outras, de menor aceitação. Com algumas nuances – privilegiando ora este, ora aquele aspecto – todos estes termos designam métodos, processos, estratégias ou procedimentos de baixo custo e fácil aplicação, eficazes, de pequena escala e facilmente replicáveis. Sempre mantiveram, também, o foco na busca de soluções apropriadas aos diferentes contextos socioeconômicos, culturais e ambientais prevalentes nas comunidades pobres. E, finalmente, sempre privilegiaram o saber popular, as alternativas de soluções espontaneamente surgidas nas comunidades, reconhecidas como detentoras do direito à autodeterminação e à participação no processo de planejamento, execução, monitoramento e avaliação das ações voltadas ao seu próprio desenvolvimento.
5. Produção de tecnologia implica em experimento e risco. Como é isso na tecnologia social?
Evidentemente, a geração e a aplicação de uma tecnologia social requer um forte sentido ético. Isto porque – diferentemente do que ocorre em outras áreas –, o experimento de uma tecnologia social não se dá em laboratório, de uma maneira que o pesquisador tem total controle das operações; mas sim, nas próprias comunidades que se pretende beneficiar e junto aos segmentos sociais que se pretende beneficiar. Os riscos são, portanto, bastante elevados. Caso se aplique algum procedimento inadequado, pode-se obter até mesmo um efeito iatrogênico, prejudicando-se aqueles a quem se pretendia beneficiar. Neste caso, o rigor ético dos agentes da intervenção social constitui a melhor forma de prevenção dos eventuais riscos associados ao processo de implantação da tecnologia. Consoante os seus valores éticos, portanto, devem ser criados e estabelecidos os sistemas, as metodologias e instrumentos a serem empregados no processo de monitoramento e avaliação permanentes, componentes programáticos que devem iniciar-se ainda na etapa de estudo situacional e diagnóstico do contexto social, estendendo-se pelas etapas de concepção e desenvolvimento da tecnologia, planejamento e implantação. É importante, também que todo este processo se desenvolva em permanente interação com os grupos beneficiários, com vistas a garantir que o produto (serviço) final corresponda às suas reais necessidades e expectativas, além de contemplar os seus saberes e experiências, respeitar o seu direito à autodeterminação, alavancar e fomentar sua autonomia, seja pessoal ou socialmente.
6. Quais as etapas que devem ser levadas em conta na construção de uma tecnologia social?
Consoante a filosofia da Comunicarte, o processo de construção de uma tecnologia social envolve seis etapas progressivas, que se complementam. São elas:
a) Diagnóstico Situacional
É a análise detalhada do contexto socioeconômico, cultural, ambiental e comportamental em que se vai operar, buscando-se identificar os problemas socioambientais mais relevantes e suas possíveis soluções; os segmentos mais afetados e suas principais características sociodemográficas, econômicas, culturais e comportamentais; as potencialidades presentes na comunidades em termos de recursos humanos, materiais, financeiros e tecnológicos; as atitudes, hábitos e práticas mais prevalentes em relação às questões sociais que serão abordadas; os profissionais e instituições locais mais influentes, que poderão atuar como agentes multiplicadores ou validadores da tecnologia social; os demais líderes formais e informais; e outros aspectos. Atualmente, a Comunicarte vem trabalhando na formatação e sistematização do Estudo de Impacto Social (EISO) e do Relatório de Impacto Social (RISO), um modelo de análise conceitual e metodologicamente bem mais avançado do que o estudo ou diagnóstico situacional.
b) Criação & Desenvolvimento
Esta etapa refere-se à concepção da tecnologia social e seu refinamento mais imediato, ajustando-a tanto às necessidades e expectativas dos grupos beneficiários quanto às potencialidades locais. A utilização de um número de telefone para ligações gratuitas com denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes e/ou de violência contras as mulheres, por exemplo, é uma tecnologia social que vem obtendo os melhores resultados em muitos estados. Contudo, tecnologias dessa natureza seriam quase inútil em comunidades interioranas muito pobres, nas quais o acesso ao telefone é bastante difícil. Quanto ao refinamento, o processo de implantação da tecnologia deve ser monitorado e avaliado, para que se identifiquem as melhores formas de propiciar o serviço ou produto à população. No caso do telefone, são requisitos essenciais: a) gratuidade da ligação; b) sigilo absoluto quanto à identificação do denunciante; c) período em que o serviço está disponível, de preferência, 24 horas por dia; d) presteza e qualidade do atendimento às pessoas que desejarem oferecer denúncias; e) possibilidade de o denunciante acompanhar o andamento do caso denunciado; e outros aspectos que a prática demonstre serem relevantes. O processo de refinamento de uma tecnologia social pode perdurar, portanto, até após a avaliação de resultados e de impacto social das ações, que comumente oferecem novos subsídios para o seu aperfeiçoamento técnico e adequação ao contexto social.
c) Viabilidade Técnica
Nesta etapa, deve-se estabelecer e consolidar o padrão técnico da tecnologia, o seu padrão tecnológico. Assim, o soro caseiro possui uma fórmula e um método de produção universalmente aplicável, o mesmo ocorrendo com a multi mistura e os alimentos preparados com o soro do leite. No caso de telefones do tipo disque-denúncia, o padrão tecnológico envolve a precisa identificação e a classificação das violações a serem denunciadas, assim como o modelo básico de atendimento ao denunciante e um sistema de acompanhamento das denúncias junto a outros órgãos envolvidos.
d) Testes de Aferição da Viabilidade
Estes testes de aferição constituem o processo de experimentação de uma tecnologia social, e as suas características dependem da natureza dessa tecnologia. Os primeiros testes de aferição da viabilidade devem ser realizados tão logo seja estabelecido o padrão técnico da tecnologia. Em geral, a experimentação ocorre por meio da implantação do serviço ou produto junto a um grupo selecionado de pessoas, que se dispõem a contribuir para a validação e refinamento da tecnologia social. No caso da adição de soro de leite bovino aos alimentos, por exemplo, cujos benefícios nutricionais há tempos são conhecidos, a etapa de experimentação concentrou-se em estabelecer uma aparência, aroma e sabor que facilitassem sua aceitação pelos beneficiários. Já em relação à farinha multi mistura, os testes também indicaram o tipo e variedade dos seus componentes, de maneira a elaborar um produto nutritivo e balanceado. Algumas técnicas de pesquisa social (como grupo-focal, observação participante, pesquisa-ação e pesquisa de follow-up) podem ser aplicadas eficazmente à validação de tecnologias sociais.
e) Viabilidade Política
É a etapa em que a tecnologia social passa a ser reconhecida e aceita como uma solução eficaz, conquistando autoridade e visibilidade junto a diferentes atores sociais. Para isso, é fundamental desenvolver um programa consistente e articulado de comunicação, de maneira a disseminar a tecnologia junto aos diferentes públicos de interesse e, em especial, junto aos líderes e formadores de opinião. Os públicos-alvo das ações de comunicação deverão ser adequadamente segmentados, de acordo com a natureza da tecnologia social, para que os produtos e atividades sejam bem focalizados, propiciando resultados mais rápidos e consistentes. Assim, uma tecnologia de natureza educacional deve ser disseminada, prioritariamente, junto a professores, diretores de escolas, supervisores e orientadores educacionais, formuladores e executores de políticas educacionais nos três níveis de governo e legisladores, nos âmbitos municipal, estadual e federal. Seja qual for a natureza da tecnologia social, os profissionais de comunicação também devem constituir um público-alvo prioritário, dada a sua capacidade de multiplicação das informações e de contribuição à formação da opinião pública. Assim, paulatinamente, a tecnologia social se vai impondo como uma conquista social, sendo comentada e recomendada por técnicos influentes em suas áreas de atuação, reivindicada e apontada como solução por diferentes organizações e movimentos sociais. Uma tecnologia social torna-se politicamente viável quando é institucionalizada, questão analisada mais adiante.
f) Viabilidade Social
Esta é a última etapa do processo de construção de uma tecnologia social, quando ela deverá estar apta a ganhar escala, sendo replicada em comunidades que enfrentem os problemas que motivaram sua criação. Neste caso, dois fatores são cruciais. Primeiro: a tecnologia deve ser formatada e sistematizada como uma franquia, para que o processo de replicação se realize de acordo com o modelo preestabelecido, inclusive com os ajustes e alinhamentos necessários para atender às especificidades locais. Segundo: é preciso que se estruture uma ampla rede de atores sociais em torno da tecnologia, replicando-a em diferentes pontos de distribuição, facilitando o acesso da população aos serviços. Nesta fase, a tecnologia social já poder ser considerada uma política pública. Se for possível envolver o setor governamental, tornando-a também uma política de governo, seus resultados e impacto social serão potencializados.
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